Tudo sobre a Jornada do Herói ou Monomito

Um clássico para quem gosta de escrever ou contar histórias, a Jornada do Herói é uma criação (pelo menos o nome, já que a estrutura não foi criada por ele, apenas observada) de Joseph Campbell. A Jornada do Herói também é famosa por seu outro nome, o Monomito.

Assim como os Sete Enredos Básicos, é um framework para construir e pensar histórias.

Resumo do Monomito

Campbell diz que o Monomito no qual ela vai se basear para falar sobre a jornada do herói nada mais é do que a estrutura de todas as grandes histórias de herói, explicando que todas elas podem ser resumidas em 3 etapas simples. Algum tempo depois, baseado nesse trabalho de Campbell, Christopher Vogler define 12 passos, dentro dessas três etapas, para escrever uma história.

prometheus, imagem original do monomito

Se você preferir, fiz um vídeo interpretando e comentando o primeiro capítulo do livro “O Herói de Mil Faces”, do Campbell, onde ele aborda muito mais o aspecto psicológico da Jornada do Herói e de ondem vem os mitos nessa visão mais abstrata. Esse vídeo você encontra aqui.

3 Etapas básicas da Jornada do Herói

Pense em um enredo de forma simplificada e você sempre vai perceber que as histórias começam com algum incidente que leva a personagem principal a tomar alguma atitude, essa atitude vai fazer ela passar por várias situações e no seu clímax ela conseguirá responder todas as questões deixadas em aberto durante a história, principalmente a do incidente principal. Essa estrutura de início, meio e fim é representada, por Campbell em três etapas:

1) Partida/Separação (Início)

A primeira macro etapa é a de partida ou separação quando o herói sai da sua zona de conforto e parte em direção a uma nova aventura. É aqui que o incidente ocorre e ele precisa sair do seu lugar atual em busca de alguma coisa.

2) Descida/Iniciação/Penetração (Meio)

Na segunda macro etapa da jornada do herói existem dois momentos. No primeiro momento o herói se prepara para as aventuras que vem a seguir. É no começo dessa segunda etapa que ele se junta aos seus aliados, aprende novas habilidades e entende um pouco mais de seu desafio. Depois disso ele entra, de fato, no novo mundo e parte na empreitada de conseguir responder todas as perguntas em aberto feitas até agora, passando por diversos novos obstáculos.

3) Retorno (Fim)

Na última macro etapa o herói atinge o clímax, que é quando o incidente principal que ocorreu na primeira etapa e as perguntas que ele deixou em aberto são respondidas. É aqui que a platéia, assim como o herói, entende que tudo o que aconteceu com ele foi para levá-lo até aquele momento. Depois de passado o clímax o herói volta ao seu lugar comum, geralmente com alguma recompensa, que não necessariamente é algo físico, podendo ser uma habilidade ou um novo jeito de enxergar o seu mundo.

Comentários sobre as 3 etapas básicas da Jornada do Herói

Como dá para perceber, apesar de parecerem óbvias e simples, reconhecer essas etapas exigiu de Campbell um grande trabalho de análise e interpretação de muitos mitos para chegar nessas conclusões. Pode parecer óbvio que histórias precisem da montagem de um problema inicial, uma série de obstáculos e uma resolução para tudo isso, mas é nesse ponto que muitas pessoas pecam na hora de contar suas histórias, sejam elas escritores de livros ou empresas na hora de fazer o seu branding e fazer suas ações de marketing. Portanto, ao sentir-se perdido, não deixe de pensar em como encaixar a sua história nessa estrutura de jornada do herói e analisar o que está faltando.

Os 12 passos da Jornada do Herói

jornada do herói

Seguindo a mesma linha de Campbell, Christopher Vogler pega a teoria de Campbell da Jornada do herói e divide as 3 etapas iniciais em 12 passos. Contextualizando um pouco mais: Vogler era roteirista na Disney e, para ajudar os outros companheiros de trabalho, fez um pequeno guia para ajudá-los a entender melhor como entender essa estrutura da jornada do herói e como criar uma história a partir dela.

Depois de um tempo, o próprio Vogler pegou esse pequeno guia e transformou em um livro (indicadíssimo, por sinal). Para Vogler, as 12 etapas são:

1) Mundo comum

No começo da história somos apresentados ao principal personagem e ao seu mundo comum que nada mais é do que a realidade atual dele. É o momento, na hora de contar a história, de causarmos empatia pela personagem principal e situar o leitor (ou espectador, enfim, depende da sua mídia) no mundo do herói. Lembrando que não necessariamente o mundo da realidade do herói é onde vai se passar a história (lembre-se de Matrix, o mundo comum de Neo, apesar de ser dentro do sistema, ainda é bem diferente do que ele vai vivenciar depois em sua jornada).

nemo-barreira-de-corais - primeira parte da jornada do herói

Um exemplo clássico: Em Procurando Nemo o Mundo Comum do Marlin, o pai do Nemo, antes de sair em sua jornada em busca do filho, é a Grande Barreira de Corais, um grande subúrbio dos peixes, que além de ter uma vizinhança amigável ainda permite que ele tenha segurança na casa (anêmona).

2) Chamado para a Aventura

Na etapa do chamado para a aventura algo acontece que vai fazer com que o herói tenha que sair do seu lugar comum e partir em busca de uma aventura. Pode ser uma maldição lançada, ou na necessidade de sair atrás de algo como uma cura ou a resolução dos próprios problemas, enfim, qualquer coisa que faça o herói se mover e sair do seu mundo comum.

r2message

Exemplo: Luke encontra R2-D2 e C3PO no deserto e dentro do pequeno robô uma mensagem para intriga nosso herói, que sente uma necessidade em ir atrás daquele tal de Obi-Wan Kenobi. Em Harry Potter esse chamando é físico, através da carta que Harry recebe de Hogwarts.

3) Recusa do chamado

Depois de receber o chamado a aventura, o herói deve ter a oportunidade de recusá-lo e desistir da aventura. É importante ressaltar que, embora o herói possa fazer isso, ele vai invariavelmente ter que partir em direção a aventura. A recusa ao chamado é momentânea e geralmente serve para dar uma curva dramática no início da narrativa.

neoescapematrix

Exemplo: Quando Neo, no topo do prédio, desiste de fugir dos agentes e acaba sendo preso. Depois ele vai, necessariamente ter que sair da Matrix para se tornar o escolhido mas esse contratempo só serviu para adiar um pouco mais esse momento e dar uma carga dramática, com a cena do interrogatório.

4) Encontro com mentor/Ajuda sobrenatural

O herói nunca está realmente pronto ao iniciar sua jornada. Ele sempre vai precisar de um mentor ou uma força fora do eixo comum para dar um direcionamento, aquela ajudinha básica para impulsioná-lo no caminho certo.

harry-potter-vault

Nesse caso posso dar dois exemplos: No caso de um mentor, no livro O Nome do Vento, de Patrick Rothfuss, o herói Kvothe, quando mais jovem, tem um professor chamado Abenthy que o ensina o básico da magia e acaba dando rumo a tudo que vem a seguir na história de Kvothe. No caso de uma ajuda sobrenatural podemos pegar o exemplo de Harry Potter que, por um milagre, já começa com um cofre cheio de grana, uma vassoura alto nível, uma coruja e uma varinha poderosa.

5) Cruzamento do Primeiro Portal

Depois de se preparar, é hora do herói começar a sua aventura de fato e, para isso, ele deve cruzar o primeiro portal que o separa da segurança de seu mundo para os primeiros perigos que irá enfrentar. O herói, nessa hora, pode ou não encontrar guardiões de portal que servem para testar o herói e ver se ele já se encontra pronto para os obstáculos seguintes.

stardust

Exemplos: No filme/livro Stardust existe um velho que protege a saída da cidade, inclusive antes do herói atravessar esse portal pela primeira vez ele acaba tentando fazer a travessia mas não consegue, mostrando que ele não estava pronto (esse é um recurso bastante utilizado, mostrando o guardião antes, com o herói ainda sem estar pronto, impedindo-o de passar). Já no Mágico de Oz, Dorothy acaba passando pelo primeiro portal através do furacão, sem guardião.

6) Barriga da Baleia (Travessia do Primeiro Limiar)

Depois de passar pelo guardião e chegar a um novo mundo, o herói renasce para essa nova aventura. É aqui que o primeiro ato chega ao seu fim e a história começa a ganhar o seu ritmo. Muitas vezes essa travessia pode ter um caráter de renascimento, caso algo tenha acontecido com o herói para ele fazer essa travessia do mundo antigo para o novo.

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Uma outra característica é que não existe mais volta e o herói só tem como seguir em frente a partir de agora. Um bom exemplo é o “renascimento” de Neo depois dele tomar a pílula e surgir no mundo real. Toda aquela cena dele acordando, sendo expelido pela máquina e sendo recebido por Morpheus os outros é uma grande imagem para a Barriga da Baleia.

Depois de passado o primeiro limiar e a chegada ao novo mundo, é hora do herói conhecer as regras do novo lugar, seus inimigos e antagonistas, além de conseguir novos amigos e aliados. Geralmente depois da travessia ele começa a juntar o grupo que fará companhia a ele até o final da história ou que o ajudará a progredir na aventura.

7) Aproximação

Já reconhecido o novo mundo e com seus amigos e aliados definidos, o herói começa a se preparar para entrar na Caverna Oculta, um conceito trazido a tona por Campbell que basicamente nada mais é do que o local onde o herói terá a sua grande provação e dificuldade. Todos os momentos que servirem, no enredo, para levar o herói até a caverna oculta fazem parte dessa etapa, onde ele chega no limiar dessa fronteira que oferecerá um perigo mortal.

death-star

Um grande exemplo é em Star Wars quando Han Solo, Luke e Obi-Wan se aproximam da Estrela da Morte para resgatar a Princesa Leia.

8) Provação difícil ou traumática

Após adentrar a caverna oculta o herói precisa provar o seu valor e, por isso, é chegada a hora dele passar pela pior da provas, onde terá que enfrentar os seus maiores medos e vencê-los, antes de receber a sua recompensa.

Geralmente a etapa da Provação envolve a grande luta do herói contra uma força muitas vezes impossível de ser vencida. Ele precisará de todo tipo de sorte e força de vontade para vencer o desafio.

Uma observação minha que pude reparar é que aqui, em muitas histórias, surgem resoluções Deus Ex Machina, por isso é importante deixar a sorte como um fator apenas coadjuvante para a vitória do herói (deixar os vilões extremamente poderosos e com poucas fraquezas, por exemplo, acaba favorecendo esse cenário que é longe de ser condenável, é apenas uma solução rápida e sem graça para mim, uma opinião pessoal mesmo).

Na minha visão pelo menos é melhor que o herói tire forças até então desconhecidas dentro de si (ou de algum objeto já falado na trama, algo na linha Arma de Chekov), mas plausíveis, do que forçar alguma coisa surgindo do nada na trama que faça ele resolver seus problemas.

É importante que o herói tenha que morrer ou parecer que morre para a provação ser funcional e verdadeira. De algum modo ele tem que sair um novo homem de lá, com a provação sendo tão difícil que não há saída: ele precisará sair com cicatrizes.

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Dois exemplos: O primeiro o próprio Vogler dá em seu livro, sobre os heróis em comédias românticas que sempre, em dado momento do filme, parecem ter acabado de vez com as chances de saírem com uma relação com o seu par romântico no filme, onde tudo parece perdido para o ramance deles. Um outro exemplo é quando os heróis de Cavaleiros do Zodíaco, todos praticamente mortos ou a beira da morte, conseguem vencer esse destino e elevar seus poderes e níveis cósmicos (pra mim um grande Ex Machina, que funciona na narrativa ágil de um desenho mas perde a chance de ser algo mais do que simplesmente uma saída fácil).

9) Recompensa

Depois de vencer a morte, ou algo próximo disso, é hora do herói mostrar para que veio ao mundo e recuperar a sua recompensa mágica. Excalibur, Pedra Filosofal, a princesa sã e salva, o Santo Graal exemplos não faltam desse momento onde o herói finalmente consegue, depois da sua jornada, ter sua tão sonhada recompensa.

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Pode ser que essa recompensa ajude o herói a ter a sua reconciliação com algum problema que tinha anteriormente (Vogler fala muito de uma reconciliação com os pais ou com a parte romântica oposta, mas conseguimos achar alguns exemplos relacionados a amizade em outras mídias. Um bom exemplo da amizade é o filme dos Vingadores, onde eles conseguem resolver as diferenças).

10) O caminho de volta

Nem tudo são flores. Após conseguir a sua recompensa o herói deve voltar para casa e nem sempre esse momento é um momento fácil. É aqui que as forças opostas tentarão pegar de volta o herói e sua recompensa. É a última tentativa do lado oposto de voltar ao status quo antes da jornada ter afetado o seu próprio mundo.

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Geralmente depois dessa perseguição o herói decide abandonar o mundo especial e escolhe por voltar ao seu mundo comum. Muitas vezes o caminho de casa pode ser algo simples e automático: Harry Potter é um exemplo clássico, com ele sempre acordando na cama de um hospital depois das suas aventuras. Um exemplo de filme que não corta essa última perseguição é “Perdido em Marte”, onde, mesmo após conseguir sair do Planeta Marte, a personagem do Matt Damon ainda precisa fazer um último esforço antes de chegar no seu mundo comum.

11) Ressureição do Herói

Aqui Campbell pode nos dar uma ajuda pelo lado mais mítico da história: Antigamente, após as guerras ou até mesmo voltando de uma caça, os responsáveis por isso deveriam se purificar nos locais específicos, justamente para não voltarem sujos para o seu reino. Não a toa muitos mitos heróicos possuem uma ressureição com o herói surgindo das águas já que o ato de se banhar fazia parte desse ritual de purificação.

Basicamente: existe um novo herói, mas você não o percebe pois ele ainda está sujo com as marcas de sua versão antiga. Por isso em muitos momentos a ressureição do herói acaba sendo extremamente visual com o herói realmente renascendo da morte (vide Neo em Matrix, depois de tomar vários tiros dos agentes e depois levantar, finalmente, como o Escolhido).

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A Ressureição do Herói pode ocorrer antes da volta para a casa mas muitas vezes os acontecimentos do caminho da volta que vão garantir essa “ressureição”. É só pensar que o retorno do Herói ao seu Mundo Comum exige uma nova travessia por um Limiar.

12) Regresso com o Elixir

Depois do herói passar por experiências de quase morte, estar com o seu Graal em mãos, de nada adianta ele não poder se gabar disso e trazer essas experiências e esse presente para a sua realidade.

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Aqui o conhecimento ou item que o herói adquiriu vai ajudar a resolver algum problema de seu mundo comum e vai ajudá-lo a ser reconhecido como o herói que é. Em Valente, Merida volta com a experiência necessária para tocar o reino e sua vida sem precisar de uma figura masculina. Em Wall-e o pequeno robozinho consegue trazer de volta os humanos para o seu Mundo Comum, para torná-lo habitável novamente. No livro do Senhor dos Anéis vemos um exemplo bom disso, quando os Hobbits retornam ao condado e o mesmo está dominado por Saruman. Então eles ainda precisam expulsar ele de lá utilizando as habilidade novas que conseguiram durante sua jornada.

Comentários finais sobre a Jornada do Herói

É preciso tomar muito cuidado com a Jornada do Herói e não tomá-la como um guia criativo a ser seguido etapa a etapa. A melhor maneira de usá-la é como referência, principalmente ao entender a história que você quer fazer. Algumas etapas podem ser entrepostas e feitas ao mesmo tempo, outras podem ser mais estendidas que outras, mas o importante é entender que saber de cabeça todas as etapas do monomito não farão com que uma história surja do ar.

Outro aspecto importantíssimo: Por ser construído com base em mitos solares (masculinos), o Monomito muitas vezes não consegue exprimir direito uma jornada válida para uma personagem feminina. Logo é importante entender o peso machista da jornada do herói por si mesmo e entender que por mais que uma heroína siga as etapas elas podem acabar carregando características longe de serem representativas (não é porque você usou uma personagem feminina que a obra se tornou representativa. Lembre sempre da regra: Se eu substituir essa minha personagem feminina por uma masculina, vai ser impossível de ser feito e no mínimo estranho? Se não for, não é representativo). Mas nesse âmbito, melhor que a Jornada do Herói para entender e escrever personagens femininas, é utilizar a Jornada da Heroína (ou Jornada da Deusa), muito mais representativa e baseada nos mitos lunares, mas condizentes com um enredo que busca representatividade.

Um dedo de prosa sobre as classes

A jornada do herói e suas etapas são um esqueleto de um enredo em si. No entanto, para desenvolvimento de personagens, é importante entender que existem os principais arquétipos tanto do herói como de seus asseclas. Para isso o Vogler vai utilizar em seu livros os principais arquétipos de Jung para descrevê-los. No futuro farei um post sobre arquétipos que estará aqui linkado.

Quer entender mais sobre o Monomito? Clica nas referências aí embaixo

Link do TV Tropes sobre o Monomito

Link para o livro “A Jornada do Escritor” do Christopher Vogler

Link para o livro “O herói de mil faces” do Joseph Campbell


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